A sua sexualidade é realmente sua?

quinta-feira, 3 de julho de 2014
Até que ponto a nossa sexualidade é realmente nossa?

Estou há algum tempo me perguntando sobre isso, principalmente pela esfera heterossexual. Se levarmos em conta a criação que a sociedade dá para nossas crianças, o material didático ao qual elas tem acesso, o senso comum gritando em seus ouvidos, os discursos em programas de TV e tantos outros aspectos que ajudam a formar a mentalidade dos indivíduos, até que ponto é saudável afirmar que somos agentes da nossa própria sexualidade? 

Até que ponto podemos afirmar que sabemos quais são nossos desejos, inclusive os sexuais? É preciso analisar a forma como fomos criadas, os gostos que nos foram impostos, as vontades que falaram que a gente tinha que ter. Os brinquedos, as cores, os modos. O que estava permitido que a gente gostasse e o que nós deveríamos manter distância. Analisar isso é entender que, de diversas formas, foi infiltrado no nosso subconsciente uma forma de relacionamentos que ultrapassa a monogamia e se enrosca por completo na heterossexualidade.

A sociedade doutrina as meninas a odiarem seus corpos. Competirem entre si para nunca se sentirem completas consigo mesma. Acharem a outra sempre mais bonita e, por isso, uma inimiga que deve ser combatida. E, odiando seu próprio corpo, as meninas reproduzem esse ódio para qualquer corpo que se assemelhe ao seu próprio. O corpo das meninas é uma área restrita, onde elas mesmas não têm acesso. Isso se inicia quando começam a ensinar que a nudez deve ser negada, repreendida. Depois, mandam as meninas tirarem as mãos de seus corpos. Não, as meninas não podem se conhecer. Assim, o ódio ao próprio corpo só aumenta - isso acontece quando não dizemos que é possível amar o próprio corpo. Em contrapartida, meninas convivem com meninos que já exercem certa liberdade sobre o corpo. Logo, quando a sexualidade começa a bater na porta da curiosidade feminina, as mulheres são instruídas - se não coagidas - a não explorarem o próprio corpo, deixando suas dúvidas e vontades sempre em segundo plano. O ensino de sexualidade que a sociedade faz sobre a mulher é que ela deve entregar o corpo à um homem e que ele deve explorar para saciar os desejos dele, nunca os dela.

A sexualidade feminina, assim como a linguagem feminina, apresenta-se de maneira diferente da sexualidade masculina. Melhor dizendo, a sexualidade feminina não se apresenta. E, não se apresentando, é muito mais fácil que simplesmente seja reproduzido o que lhes foi ensinado. Desta forma, meninas continuam a não se conhecer, a odiar seus corpos, a criar repulsa pelos corpos de outras meninas e a ter suas experiências sexuais com meninos. E pensando nesse ponto: Até onde é realmente uma escolha manter relações heterossexuais pelo decorrer da vida?

Não dá para subestimar a capacidade de se moldar as vontades. O que a sociedade capitalista patriarcal faz com a mente de nossas meninas, é cruel. É uma lavagem cerebral. Ensinam que as mulheres devem odiar seus corpos para poder vender a elas produtos que não precisariam se soubesse que são lindas. Doutrinam as mulheres à manter distância de outras mulheres - e por não conhecer o próprio corpo, as mulheres se afastam do corpo de outras mulheres. Vamos lá, aposto que você já escutou, de alguma mulher, que ela "sabe lidar melhor" com homens. Com o corpo masculino. No sexo, as mulheres são doutrinadas a trabalhar com o gozo masculino, não com o próprio. A sociedade reproduz sem o menos pudor o conceito de que mulheres são inferiores, frágeis e que precisam de um homem para serem completas. E quem, depois de escutar durante anos que é incompleta, não quer se completar? As mentiras que são ditas e introduzidas fundo na massa cinzenta do nosso cérebro interferem diretamente nos nossos desejos.

Quando ensinamos meninas e mulheres a odiarem seus corpos, ensinamos a elas que é preciso ter nojo e manter distância de qualquer corpo que se assemelhe ao dela. Assim, ao invés de ensinarmos às meninas que é possível amar, gostar e proteger outras meninas, enfiamos no subconsciente delas que é saudável e aceitável que se crie um campo de batalha para agradar o público masculino que não está preocupado com a liberdade sexual feminina. A sociedade segue dizendo para as meninas não se tocarem, enquanto estimula a masturbação masculina. O patriarcado segue afirmando que mulheres só se completam com homens, causando dessa forma uma lesbofobia tão compulsória quanto a heterossexualidade.

Questionando a heterossexualidade compulsória e suas consequências prejudiciais na vida das mulheres, é impossível não questionar o papel do feminismo quanto a liberdade sexual das mulheres. Talvez o discurso esteja posto de maneira errada, de forma a reproduzir essa heterossexualidade ainda mais compulsoriamente. Estamos ensinando às mulheres a transar com vários homens, manter relações afetivas e sexuais com vários homens, mas pouco estamos pensando em mostrar para essas mulheres que essa sexualidade e esse "tesão" nos homens foi imposto. Que, talvez, se sentir atraída por homens não seja uma decisão livre de interferências. Que, talvez, gostar de mulheres seja algo que você já quis, mas que foi brutalmente arrancado de sua mente por uma sociedade doentia, patriarcal, capitalista e falocêntrica. Entendo, então, que para além de ensinar às mulheres a carregar camisinha na bolsa para poder transar com qualquer desconhecido na rua, é preciso mostrá-las os perigos e os cuidados que são precisos nas relações heterossexuais - repletas de relação de poder. Transar com vários homens diferentes não é, necessariamente, exercer liberdade sobre o corpo. Não escutar comentários te chamando de "vadia" por estar transando com vários homens não significa que a sociedade avançou no debate e está mais disposta a aceitar a sexualidade feminina. A sexualidade feminina, libertária, quando é voltada para um prazer também masculino, não será tão questionada assim. A moral vai questionar a mulher, mas os homens ainda vão se deitar com essas mulheres liberais.

Por isso se critica tanto as mulheres que, depois de conhecer o feminismo, resolveram não se relacionar mais com homens. Por que a liberdade sexual feminina não é tão bem vista quando envolve excluir homens das relações sexuais/amorosas. Só que "liberdade" sexual é sobre não ter correntes te prendendo a um tipo fixo de prazer sexual e contentamento amoroso. E eu acho que o feminismo já fez um bom trabalho ensinando às mulheres que elas podem se relacionar com quantas pessoas quiserem. Está na hora de explicar que essas "pessoas" também podem ser outras mulheres, que não devemos odiar nossos corpos, que podemos ter uma vida sexual ampla e completa nos relacionando só com mulheres, que existe jogo de poder em relações com homens (mesmo que ele seja o mais "pró-feminista" possível).

É preciso proteger nossas meninas, que são torturadas por essa sociedade que prega o ódio às mulheres. E, se a sociedade não ama as mulheres, está na hora das mulheres se amarem.

Amor lésbico está permitido sim!
E em grande escala.