A sua sexualidade é realmente sua?

quinta-feira, 3 de julho de 2014
Até que ponto a nossa sexualidade é realmente nossa?

Estou há algum tempo me perguntando sobre isso, principalmente pela esfera heterossexual. Se levarmos em conta a criação que a sociedade dá para nossas crianças, o material didático ao qual elas tem acesso, o senso comum gritando em seus ouvidos, os discursos em programas de TV e tantos outros aspectos que ajudam a formar a mentalidade dos indivíduos, até que ponto é saudável afirmar que somos agentes da nossa própria sexualidade? 

Até que ponto podemos afirmar que sabemos quais são nossos desejos, inclusive os sexuais? É preciso analisar a forma como fomos criadas, os gostos que nos foram impostos, as vontades que falaram que a gente tinha que ter. Os brinquedos, as cores, os modos. O que estava permitido que a gente gostasse e o que nós deveríamos manter distância. Analisar isso é entender que, de diversas formas, foi infiltrado no nosso subconsciente uma forma de relacionamentos que ultrapassa a monogamia e se enrosca por completo na heterossexualidade.

A sociedade doutrina as meninas a odiarem seus corpos. Competirem entre si para nunca se sentirem completas consigo mesma. Acharem a outra sempre mais bonita e, por isso, uma inimiga que deve ser combatida. E, odiando seu próprio corpo, as meninas reproduzem esse ódio para qualquer corpo que se assemelhe ao seu próprio. O corpo das meninas é uma área restrita, onde elas mesmas não têm acesso. Isso se inicia quando começam a ensinar que a nudez deve ser negada, repreendida. Depois, mandam as meninas tirarem as mãos de seus corpos. Não, as meninas não podem se conhecer. Assim, o ódio ao próprio corpo só aumenta - isso acontece quando não dizemos que é possível amar o próprio corpo. Em contrapartida, meninas convivem com meninos que já exercem certa liberdade sobre o corpo. Logo, quando a sexualidade começa a bater na porta da curiosidade feminina, as mulheres são instruídas - se não coagidas - a não explorarem o próprio corpo, deixando suas dúvidas e vontades sempre em segundo plano. O ensino de sexualidade que a sociedade faz sobre a mulher é que ela deve entregar o corpo à um homem e que ele deve explorar para saciar os desejos dele, nunca os dela.

A sexualidade feminina, assim como a linguagem feminina, apresenta-se de maneira diferente da sexualidade masculina. Melhor dizendo, a sexualidade feminina não se apresenta. E, não se apresentando, é muito mais fácil que simplesmente seja reproduzido o que lhes foi ensinado. Desta forma, meninas continuam a não se conhecer, a odiar seus corpos, a criar repulsa pelos corpos de outras meninas e a ter suas experiências sexuais com meninos. E pensando nesse ponto: Até onde é realmente uma escolha manter relações heterossexuais pelo decorrer da vida?

Não dá para subestimar a capacidade de se moldar as vontades. O que a sociedade capitalista patriarcal faz com a mente de nossas meninas, é cruel. É uma lavagem cerebral. Ensinam que as mulheres devem odiar seus corpos para poder vender a elas produtos que não precisariam se soubesse que são lindas. Doutrinam as mulheres à manter distância de outras mulheres - e por não conhecer o próprio corpo, as mulheres se afastam do corpo de outras mulheres. Vamos lá, aposto que você já escutou, de alguma mulher, que ela "sabe lidar melhor" com homens. Com o corpo masculino. No sexo, as mulheres são doutrinadas a trabalhar com o gozo masculino, não com o próprio. A sociedade reproduz sem o menos pudor o conceito de que mulheres são inferiores, frágeis e que precisam de um homem para serem completas. E quem, depois de escutar durante anos que é incompleta, não quer se completar? As mentiras que são ditas e introduzidas fundo na massa cinzenta do nosso cérebro interferem diretamente nos nossos desejos.

Quando ensinamos meninas e mulheres a odiarem seus corpos, ensinamos a elas que é preciso ter nojo e manter distância de qualquer corpo que se assemelhe ao dela. Assim, ao invés de ensinarmos às meninas que é possível amar, gostar e proteger outras meninas, enfiamos no subconsciente delas que é saudável e aceitável que se crie um campo de batalha para agradar o público masculino que não está preocupado com a liberdade sexual feminina. A sociedade segue dizendo para as meninas não se tocarem, enquanto estimula a masturbação masculina. O patriarcado segue afirmando que mulheres só se completam com homens, causando dessa forma uma lesbofobia tão compulsória quanto a heterossexualidade.

Questionando a heterossexualidade compulsória e suas consequências prejudiciais na vida das mulheres, é impossível não questionar o papel do feminismo quanto a liberdade sexual das mulheres. Talvez o discurso esteja posto de maneira errada, de forma a reproduzir essa heterossexualidade ainda mais compulsoriamente. Estamos ensinando às mulheres a transar com vários homens, manter relações afetivas e sexuais com vários homens, mas pouco estamos pensando em mostrar para essas mulheres que essa sexualidade e esse "tesão" nos homens foi imposto. Que, talvez, se sentir atraída por homens não seja uma decisão livre de interferências. Que, talvez, gostar de mulheres seja algo que você já quis, mas que foi brutalmente arrancado de sua mente por uma sociedade doentia, patriarcal, capitalista e falocêntrica. Entendo, então, que para além de ensinar às mulheres a carregar camisinha na bolsa para poder transar com qualquer desconhecido na rua, é preciso mostrá-las os perigos e os cuidados que são precisos nas relações heterossexuais - repletas de relação de poder. Transar com vários homens diferentes não é, necessariamente, exercer liberdade sobre o corpo. Não escutar comentários te chamando de "vadia" por estar transando com vários homens não significa que a sociedade avançou no debate e está mais disposta a aceitar a sexualidade feminina. A sexualidade feminina, libertária, quando é voltada para um prazer também masculino, não será tão questionada assim. A moral vai questionar a mulher, mas os homens ainda vão se deitar com essas mulheres liberais.

Por isso se critica tanto as mulheres que, depois de conhecer o feminismo, resolveram não se relacionar mais com homens. Por que a liberdade sexual feminina não é tão bem vista quando envolve excluir homens das relações sexuais/amorosas. Só que "liberdade" sexual é sobre não ter correntes te prendendo a um tipo fixo de prazer sexual e contentamento amoroso. E eu acho que o feminismo já fez um bom trabalho ensinando às mulheres que elas podem se relacionar com quantas pessoas quiserem. Está na hora de explicar que essas "pessoas" também podem ser outras mulheres, que não devemos odiar nossos corpos, que podemos ter uma vida sexual ampla e completa nos relacionando só com mulheres, que existe jogo de poder em relações com homens (mesmo que ele seja o mais "pró-feminista" possível).

É preciso proteger nossas meninas, que são torturadas por essa sociedade que prega o ódio às mulheres. E, se a sociedade não ama as mulheres, está na hora das mulheres se amarem.

Amor lésbico está permitido sim!
E em grande escala. 

Sororidade pode ser uma estrada vazia

quarta-feira, 28 de maio de 2014
Acho que tá na hora da gente viver no presente. E com os pés no chão, trabalhando na distância que nossas pernas podem chegar, tomando nosso espaço e criando a nossa voz. Todas juntas. Acredito que seja um pouco com esse pensamento, que todas nós em algum momento clamamos por sororidade. Quando aprendi esse termo, aprendi na prática. Foi assim que conheci o feminismo e agradeço todos os dias por já ter visto isso dar certo. Isso funciona, meninas! A gente pode fazer isso funcionar no espaço amplo, é só a gente conseguir começar a se questionar.

O que eu entendo como sororidade é que todas as mulheres são minhas irmãs. Todas as mulheres são uma parte de mim. Eu sou toda mulher estuprada, violentada, assassinada, queimada. Eu sou toda mulher que foi silenciada por um homem, que teve sua identidade de gênero negada, que teve que se submeter a um aborto clandestino. E eu sou toda essa mulher, não por compreender todas as agressões que elas sofreram, mas por entender que eu só serei verdadeiramente livre quando ela também for.

Eu sempre tive medo de discursos bonitinhos e ensaiados. No começo, eu realmente achava que a sororidade era isso. Mas ela não é tão altruísta assim e, por isso, fui percebendo que ela, além de muito necessária, é capaz de ser posta a prova. Só que pra isso a gente tem que desconstruir algumas (muitas) coisas diariamente. Algumas delas eu tô começando a perceber agora. Por exemplo: Todas nós temos que entender mulheres trans e mulheres cis como igualmente mulheres e igualmente irmãs. Temos que entender com o máximo de urgência que homens são corporativistas. Homens se defendem. Homens foram ensinados a serem amigos, desde pequenos, enquanto à nós sempre coube a competição por aceitação masculina. Entendendo isso, a gente tem que se unir. De verdade. De coração. Entender que a agressão que outra mulher sofreu, e eu não, também me agride e me mata diariamente. Entender que o choro da outra irmã deve ser escutado e o grito deve ser apoiado. Só que, em momentos como esse, não acho que estamos nem unidas, quem dirá prontas para nos separarmos.

Depois de "TW: ciclo menstrual" e "blacklist" (que começa errado pelo nome) com radicais transfóbicas, depois de misoginia para se defender de transfobia e transfobia pra se defender de misoginia, eu volto a falar de sororidade. Por que todas estamos clamando por isso, então vamos arrumar um jeito de realmente nos unirmos? E isso não quer dizer que vamos concordar em tudo e que vamos entrar nos mesmos coletivos, ter a mesma formação política, frequentar todas os mesmos lugares ou sermos todas amigas. Mas vamos começar a tentar ter compaixão pela outra mulher e entender que ela é sua irmã. E entender que quando estamos unidas, quando aceitamos nossas diferenças ideológicas em prol de defender as mulheres do patriarcado, estamos nos fortalecendo e nos protegendo. E mais importante: estamos nos salvando juntas.

É muito fácil transar sororidade com amiga, com companheira de partido, com a menina que mora com você. É muito fácil transar sororidade com aquela menina que em momento nenhum se colocou em uma posição contrária a sua. E mais: é muito mais fácil ter sororidade com quem tem sororidade com você. Mas eu não vou esperar isso ser uma estrada de mão dupla, por que eu sinto uma urgência muito grande na união das mulheres. Eu tô pedindo socorro e eu quero que mulheres me apoiem.

Eu não estou dizendo que devemos passar por cima de opressões em prol do "ser mulher". Toda opressão deve ser repudiada e devemos combater isso no nosso cotidiano. Entretanto, acredito que nós, mulheres, que fazemos o debate feminista, devemos começar a desconstruir as hierarquias que existem ENTRE NÓS. E são vistas diariamente. E quando eu digo que toda mulher é minha irmã, é que eu vou defender toda mulher que sofrer uma agressão. Eu posso não amar essa mulher, posso não ser amiga dela, ela pode já ter me agredido diversas vezes, mas eu sempre vou entender que a opressão que ela sofre também pode me atingir - se já não me atingiu.

Só peço que, ou parem de usar da sororidade seletiva, ou entendam que a sororidade é difícil e um caminho muito longo ainda para a gente seguir. Mas eu vou me esforçar em seguir e queria muito companhia feminina.

Sobre amor livre.

domingo, 23 de fevereiro de 2014
Eu não nasci pra sofrer.
Nem você.
E no meio das relações de posse
Larguei mão da propriedade privada.
Mas não do amor
No meio da posse...
Abri mão. 
De você. 
Nunca mais de mim.
Larguei as correntes.
Soltei as amarras.
Minhas.
Suas.
Nossas.
Não quero que ninguém seja meu.
Nem meu namorado,
Nem meu amante.
Não serei nunca mais posse de...
Alguém?
Mas quero alguém aqui.
Que fique.
Sem contrato social
Sem anel de compromisso
Sem coleira.
Eu quero alguém.
Alguém que vá.
Embora.
Por uma semana
Dois meses
Vinte e cinco anos.
Alguém que não me jure eterno
Mas me sinta amor
Me beije amor
Me ame amor
Alguém que não seja único
Nem insubstituível.
Quero amar todos os dias
A mesma pessoa
As mesmas pessoas
Outras pessoas
Quero amores para sentir
Sem precisar gritar ao mundo
Mas que eu possa gritar ao mundo

Eu quero alguém que entenda
Com o máximo de urgência
Que amor livre
É sobre
Amar.

A missão vai ser cumprida... vou cortar sua pica!

domingo, 9 de fevereiro de 2014
Essa semana, no dia 6 de Fevereiro, foi o dia internacional da intolerância à mutilação genital feminina. 

(Lara Luccas)

Uma das coisas que mais escutei - e ainda estou escutando - é que "não se deve mexer na cultura alheia", com o objetivo de silenciar mais ainda esse tipo de agressão. Ao meu ver, matar mulheres, tornar seu sexo e parto extremamente dolorosos, retirar delas o prazer, arrancar seu clitóris sem anestesia quando ainda são crianças NÃO é cultura, é opressão! É uma chacina de gênero. 

Em contrapartida, essas mesmas pessoas que apossam-se da desculpa cultural para fechar os olhos mais ainda para todo o sangue que escorre, apropriam-se da cultura negra, indígena e oriental para satisfazer seus fetiches nojentos. Acham-se no direito de desconstruir a cultura alheia para se encaixar melhor na sua visão preconceituosa de mundo, a não ser quando tem mulher morrendo. Nesse caso, pedem que silenciem. Parem de gritar, mulheres! Não, não toquem aí, é patrimônio cultural de outra região, você não pode se intrometer. Só que enquanto tiver mulher morrendo por conta de uma tradição patriarcal e machista, eu não vou me calar - e nem você deveria. 

A indiferença das pessoas é gritante. É um "vamos deixar para lá, ninguém mais faz essas coisas" sendo gritado numa realidade muito diferente, onde isso ocorre todos os dias em várias partes do mundo. São mulheres morrendo, são mulheres sangrando, são mulheres gritando de dor. E ninguém se solidariza com elas. Ninguém seca as lágrimas delas. Ninguém explica para elas que aquilo ali não é obrigatório, não é lei, não é certo - é uma opressão diária que elas sofrem. Mulheres que são induzidas à levar suas próprias filhas para sofrerem o que elas sofreram, mas sem dúvidas por que não conhecem outra realidade ou outra possibilidade se não aquela. Pra quem só conhece a dor, o que é anestesia? 

(PaguFunk)

Eu ainda lembro quando a Lidiane (integrante do PaguFunk) veio me contar, toda sorridente, que estava participando de um coletivo feminista de funk. Na Baixada. Na periferia. Onde ninguém nunca aceitou que ali morava um banquete de cultura. Ela pediu pra eu escrever um funk feminista e depois ir gravar com o PaguFunk (eu sei Lidi, ainda estou te devendo esse funk!). Eu nunca vou ser capaz de esquecer a empolgação e felicidade dessa minha irmã de alma. De militância. De luta. De Baixada Fluminense. 

O PaguFunk é uma mistura necessária. Era algo que a militância feminista carecia. Sair um pouco dos muros das universidades, sair das peles brancas e da voz mansa. Era preciso mostrar para o Rio de Janeiro, para o Brasil e para o mundo a riqueza e a resistência da favela. Então o PaguFunk foi ganhando espaço, gritando por espaço, lutando por espaço. Foi deixando claro que não estava ali para pedir permissão de ninguém. A favela existe: e ela grita! A mulher existe: e ela canta! A revolução existe: e é uma mulher negra e pobre cantando funk!

Comecei a ler muitos comentários sobre a PaguFunk. Comentários não muito legais. Comentários misóginos. Comentários de ódio. Comecei a ver ameaças às minhas irmãs. Afinal, onde já se viu mulher pobre falar? Onde já se viu mulher pobre gritar? Onde já se viu mulher pobre ameaçar? E elas ameaçam. Se não com o facão pendurado na cintura, se não com um falo para "corrigir" aqueles que fogem dos padrões, com uma garganta que grita. Elas ameaçam quando estão prontas para o combate (keep calm...). Elas ameaçam quando trazem a favela para o asfalto, quando fazem a negritude descer no passinho. Quando questionam os papéis sociais de cada gênero (e questionam a normatividade de apenas dois gêneros), elas ameaçam. Elas ameaçam quando começam a cantar. Elas ameaçam por que a missão vai ser cumprida. Elas ameaçam por que o mundo, no fundo, sabe a força da mulher - e morre de medo pelo dia que elas descobrirem sua própria força. 

Um dia a Lidi me disse "o que me acalma é que, se estão me perseguindo, é por que eu estou no caminho certo". Isso nunca fez tanto sentido. As meninas estão cantando que vão cortar picas! Cortar fora, não deixar nem as bolas para contar história. Arrancar. A sangue frio. Sem anestesia. Cortar com requinte de crueldade, sem doçura, sem carinho. Cortar com a força que só uma mulher oprimida consegue ter. Cortar com a força que só uma guerreira consegue. Cortar por que sabe como dói, por que sentiu a dor durante toda uma vida. Cortar não como vingança, mas como resposta. Como destino. Há quem diga que elas só querem se vingar, eu discordo. Isso é autopreservação. Isso é resistência. Isso é sobrevivência. 

(PaguFunk)

"Se chegar lá na favela com esse papo de machista" / "Se ficar se aproveitando da boceta de novinha" / "É militante de esquerda e bate na companheira?" / "É reacionário e fecha com o Bolsonaro?" Esse são os homens que terão suas picas cortadas. Se você não é molestador, não é estuprador... por que está tão incomodado? Consigo ver dois motivos. Um deles é o mais claro: No gozo masculino ninguém toca. Ninguém impede um homem de gozar, ninguém tira dele o prazer. No homem ninguém mexe, a pica ninguém corta. O outro é ainda mais preocupante: Ninguém está querendo defender estuprador. Ninguém quer defender estuprador. Os homens querem defender seu próprio pau. Quando um homem fala que "aquilo ali não foi estupro, ela bebeu por que quis" é por que ele ou já se aproveitou de alguma mulher bêbado ou sabe que se tivesse oportunidade, se aproveitaria. Quando ele fala que "não é estupro, eles são casados" é por que ele já estuprou sua companheira diversas vezes. Quando ele justifica um abuso colocando a culpa na vítima, é por que ele mesmo não quer receber o fardo de "estuprador". 

Enquanto as mulheres estão lutando calmamente, de voz baixa e sempre um passo atrás do homem, ninguém vai se importar. Ninguém vai xingá-las. Elas incomodam e são perseguidas quando começam a se comportar de uma maneira mais subversiva. Quando uma mulher aprende a falar por si, todos os homens sentem medo. 

É preciso entender, também, que querer moldar as falas da favela num molde academicista e elitista é um apropriamento. O asfalto não pode - e não deve - se apropriar das falas da favela como se entendesse a vivência da realidade do pobre, do negro. Não entende. Não pode diminuir ou chamar as meninas de exageradas por que elas gritam que vão cortar picas. 

O "vou cortar sua pica" tem duas grandes referências na minha cabeça. Uma é a que eu falei no início do texto: A mutilação genital feminina. Outra, talvez a Lidi me entenda, são "As Justiceiras do Capivari". 

A mutilação genital feminina é uma realidade cruel. É uma tortura diária. E sobre isso só escuto o silêncio, o barulho dos grilos ou, no máximo, um pedido para deixar esse assunto para depois. Por que é cultural (aí sim é cultural) dessa sociedade machista e patriarcal ensinar que o prazer não cabe à mulher. 

Só que os homens... bem, os homens só estão preocupados com as funkeiras que vão cortar as picas dos estupradores, molestadores, reacionários, agressores! 

Que cortemos todas as picas, então.

(Todo o meu apoio, amor e sororidade às meninas do PaguFunk que estão sofrendo perseguições, ameaças e chuva de ódio.) 

"Vem mulher com a mão pro alto pra fazer revolução" 
Machistas não passarão...
E a gente vai no passinho. 

Carta Aberta do Coletivo PaguFunk: 

"PaguFunk é um coletivo autônomo e apartidário de mulheres funkeiras que transmite através da cultura funk uma mensagem feminista, sobre nosso cotidiano e das nossas irmãs das/nas favelas e periferias. O nome é uma referência à militante política de esquerda e artista da década de 20, Patrícia Galvão, conhecida como Pagu. A opção pelo funk vem como afirmação de uma cultura popular , que historicamente é marginalizada e deturpada pelas classes dominantes em sua ânsia capitalista de se apropriar e/ou diminuir tudo o que vem da favela.
As rimas da PaguFunk nasce em um território onde a cada 5 horas é registrado¹ um caso de estupro. Na região onde apresenta os maiores índices² de homicídios contra jovens do estado do RJ. Onde matam uma trans* por dia³.
É nesta conjuntura que mulheres optaram fazer versos e compartilhar suas vivências, como forma de transformar o cotidiano, onde é nulo o incentivo a produção e até mesmo do consumo não comercial dos aparelhos culturais e de entretenimento.
Buscamos incentivar o empoderamento e autonomia através de uma postura do "Faça Você Mesma", através de saraus, cantando nas praças e organizando oficinas musicais e de gravação, em bibliotecas comunitárias feministas e populares. Repudiamos o viés colonizador, com o qual muitos grupos de fora agem nestes locais, só os usando como objetos de pesquisa ou "circo exótico". Temos profundo respeito pela cultura local e pelos saberes individuais e são essas pessoas que influenciam diretamente nosso modo de ação. Ação esta que tem como sonho e meta transformar a realidade local desesperadora que vivenciamos diretamente nas ruas, becos, nos dias de alagamento, nas filas dos hospitais, na violência policial, nos ônibus lotados que somos obrigadas a pegar quando vamos trabalhar, principalmente, no que tange a classe proletária, negrxs, mulheres e trans*.
Nesta caminhada pela militância política já cantamos desde encontros estaduais de mulheres até em calçadão de bairro. E entre esses convites surgiu a oportunidade de participarmos da Residência Artística Libertária Feminista (REAL), onde foi gravado um vídeo que vem sofrendo vários ataques machistas e misóginos por parte de reacionários na internet.
Este texto surge como meio de reflexão sobre algumas respostas negativas que este vídeo teve. Agradecemos também todas as companheiras, amigas, ativistas e militantes, pelas palavras de apoio, carinho, identificação e afinidade. O texto está cheio de chavões, frases já debatidas quase a exaustão dentro dos movimentos feministas e de mulheres, mas não conseguimos escapar disto, pois aparentemente ainda há pessoas que não entenderam, uma vez que a maioria das respostas negativas que tivemos, é baseada dentro do senso comum machista e a gama de misoginia e ódio que ele desperta. Não nos interessa, entretanto, debater ou conversar com estas pessoas, eles já escolheram um lado, já tem uma posição, um modo de atuação que é totalmente antagônico ao nosso, somos inimigas destes homens machistas e misóginos.

Então, mais uma vez, machismo e feminismo não são as mesmas coisas, o primeiro é derivado direto da estrutura patriarcal com que foi moldado o nosso processo civilizatório, nossa cultura e o reflexo disto em hábitos e costumes que levam a opressão, espancamento, morte, escárnio, estupro, depreciação e não aceitação de tudo aquilo que foge aos padrões masculinos e heteronormativos. Já o feminismo é uma resposta a isto, um meio legitimo de auto defesa de um grupo historicamente oprimido. Não somos nós mulheres, lésbicas, degeneradas, trans*, homos, que saímos em gangues espancando, estuprando e torturando pessoas dissidentes do padrão patriarcal. Isto quem faz são eles, que impregnam o mundo com uma cultura de ódio que só beneficia uma ínfima parcela da população, enquanto a maioria é incentivada pela ideologia machista a duelar entre si.
Para quem ainda não ouviu a música, ela fala de uns tipos bem específicos de homens, fala dos pedófilos, dos agressores, dos reacionários... Uma vez, ao cantarmos esta música em uma praça e sermos abordadas e questionadas por um homem sobre ela, nossa resposta foi "Se você não é pedófilo, nem agressor, nem machista, não tem nada a temer". Acho que esta resposta continua sendo válida. No entanto a nossa avaliação deste episódio é positiva, sabemos que nenhum grupo oprimido conseguiu o fim desta opressão de uma forma pacífica, foram necessárias revoltas, revoluções políticas, econômicas e culturais. Nos cabe aqui incentivar a outras mulheres que façam o mesmo, gravem vídeos, músicas, escrevam textos, saiam às ruas, se mostrem, vivam, respirem, amem outras mulheres, formem coletivos, produzam diversas formas de arte. Assim como ninguém é machista sozinho, afinal é necessária toda uma estrutura social que respalde isto, ninguém é feminista sozinha, é necessário respaldarmos e apoiarmos umas as outras. Os machistas odeiam estas coisas, perdem o espaço, eles estão acostumados com uma sociedade voltada aos interesses deles, quando mostramos outra, eles piram e perdem. Sabemos que estas respostas que o vídeo teve, significa perda de espaço que eles tiveram, por isto, continuaremos a fazer mais e mais. Ecoaremos nossas vozes nas ruas, nos protestos, nas marchas, nas manifestações, nas escolas, bibliotecas comunitárias incentivando uma educação popular feminista "por nós, pelas outras, por mim”.

¹ Dados do Dossiê Mulher 2013http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/DossieMulher2013.pdf
² Mapa da Violência 2013
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf
³Dados do Centro de Referência LGBT, órgão da Centro de Referência LGBT, órgão da Superintendência de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos.

Separaram o mundo em dois

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Tudo começou quando eu nasci. Na verdade, acho que posso ir além - tudo começou quando minha mãe descobriu que eu era Maria Clara (e não Sebastião). Ganhei roupas rosas herdadas de uma prima um ano mais velha. Ganhei roupas novas em diversos tons de rosa, vermelho, laranja.

Na infância isso continuou. Ganhei coleção de bonecas, ferro de passar de brinquedo, máquina de lavar de brinquedo, uma cozinha inteira mobiliada de brinquedo! Foi designado para mim a delicadeza - mesmo que eu nunca tenha sido um exemplo de delicadeza. A mim foi depositado os mandamentos de calmaria e tranquilidade. Na escola, eu deveria ficar na fila da direita. Cheguei a ser repreendida por "não me sentar como deveria"... não tinha os "modos adequados de uma menina". Nas aulas de educação física, meninas jogavam queimado e meninos jogavam futebol. Quando o colégio começou a oferecer aulas extra depois do horário, eu queria fazer judô - mas me impediram, designaram para mim o ballet. Larguei duas semanas depois. Os meninos fazem judô, as meninas ballet. E viva o rosa naquelas intermináveis aulas de ballet! 

Quando estava na quarta série do ensino fundamental - quinto ano hoje em dia -, isso se afirmou pra mim de maneira bruta: Uma menina jogando Yugi-oh? E vencendo um menino mais velho que ela? Cheguei em casa com o olho roxo. Não era coisa de menina e aquela ação foi justificada para meus amigos como "uma forma de vocês aprenderem a não deixar mulher se meter onde não deve". Escutei muitas vezes que eu era lésbica, sapatão, não-vou-entrar-com-você-no-banheiro-pq-vc-gosta-de-mulheres. E mulher gostar de mulher? Não pode! E naquela época, eu gostava de mulheres da mesma forma que gostava de homens: com o carinho e a inocência de uma criança. 

Na segunda parte do Ensino Fundamental (6ª até 8ª série) as coisas não melhoraram muito. Eu não podia sair da escola sozinha, sem supervisão, por que me consideravam incapaz de atravessar uma rua sozinha. E eu, que primeiro fui criticada por gostar de mulheres, depois fui ensinada a não gostar de mulheres, sempre tive mais amigos homens que podiam tranquilamente passar dos limites da escola. Por que ali era assim: Direitos e deveres completamente diferentes dependendo do seu gênero. Uma escola cristã, regida por freiras, que mostravam para nós o que era o mundo real - embora eu tenha demorado muito tempo para ter tal compreensão. Lá eu aprendi o mundo real ao qual estava inserida, embora tenha ficado anos trancada dentro daqueles muros altos. Era um mundo dividido ao meio. Aos homens e às mulheres: deveres e direitos completamente diferentes (e completamente desiguais). Achei durante muito tempo que aquela escola não me preparou para o Ensino Médio ou para o mundo. Agora percebo que ela somente reproduziu tudo o que o mundo continuou a fazer comigo. 

Durante esse tempo, onde saí da infância e entrei na adolescência, tudo se tratava do gênero. Primeiro me falaram, lá na minha infância, que eu não podia me envolver com mulheres. Me "xingavam" de sapatão, lésbica, caminhoneira. Me acusavam de estar querendo invadir o espaço masculino. Entendi que eu tinha que gostar -eca!- de homens! Então me falaram para não confiar em homens - eles são homens, afinal! Se me assediarem, estão cumprindo seu papel social. Se me seguirem, foi por que eu dei brecha. Se me difamarem, foi por que eu dei motivos. Se me baterem, foi por que eu os provoquei. Tudo dividido em dois lados e se nos homens eu não podia confiar, igualmente não podia confiar nas mulheres. Por que colocaram todas elas contra mim. Por que falaram que eu tinha que ser contra elas. Tudo era questão de beleza, de poder, de sedução. Eu tinha que ser a mais bonita. Eu tinha que ser a mais legal. Ensinaram-me que com mulher a amizade é na base da falsidade - por que colocaram todas as mulheres umas contra as outras. 

Era tudo sobre o gênero - e acabava que eu não podia ter ninguém com quem contar. Se era homem, tinha uma relação de poder clara sobre mim. Se era mulher, nunca poderia manter uma relação saudável e sincera comigo, pois precisávamos sempre estar em um campo de batalha onde somos adversárias. 

As segregações continuaram: Aos homens cabiam as amizades, às mulheres a superficialidade. Aos homens os trabalhos altamente reconhecidos e aplaudidos, às mulheres os trabalhos manuais. Aos homens o poder aquisitivo, às mulheres a fama de "consumistas". Aos homens o poder do orgasmo, às mulheres a questão da vergonha. Aos homens a liberdade, às mulheres suas próprias prisões. Aos homens um respeito infinito, às mulheres uma clama por "se dê ao respeito". Aos homens todos os lugares, às mulheres a beira do fogão. Aos homens toda a glória, às mulheres toda a desonra. 

Hoje, depois de entrar no movimento feminista e entender todos os contextos que me incluíram até então, resolvi abraçar todas as mulheres que queriam que eu batesse. Abraçar todas e tratar cada mulher como uma irmã de alma e de luta. Ensinaram-me o significado de "sororidade" e escolhi por carregá-lo pela vida. Entendi que eu posso ser eu, independente do meu gênero, mas igualmente aprendi que meu gênero faz parte de mim - e o que me construiu foi, em parte, todas as segregações que sofri e todas as opressões que superei e supero diariamente. Aceitei isso como uma luta - uma luta plural e feminina! 

Sim! Feminina! 

Aprendi a amar mulheres - olha que ironia! Voltei a amar mulheres! Aprendi a entender a dor da outra - afinal, se não me atingiu ainda, com certeza me atingirá um dia. Entendi a violência de gênero que se encontra nessa segregação constante. Dividiram o mundo em dois! 

Quando eu cheguei nesse mundo, em Janeiro de 1994, o mundo já estava há séculos divido em dois. Hoje eu apoio uma parte do movimento feminista que se apropria dessa segregação para quebrá-la de dentro para fora. Isso se chama ESPAÇOS EXCLUSIVOS. Eu o defendo no feminismo, no movimento negro, no movimento trans, no movimento LGBT. Eu defendo espaços exclusivos para todos que fomos segregados e oprimidos. 

Se apropriar da segregação, entretanto, NÃO É SEGREGAR! É preciso entender essa diferença. Se estamos à parte da sociedade, se estamos separados e à margem, nos unimos! Nos unimos, nos ajudamos, nos organizamos e lutamos! 

Eu escolhi a posição política de não considerar nenhum homem cis feminista. Isso não quer dizer que eu não acredite que homens podem somar em debates ou que homens não devem apoiar a luta feminista. Acredito que ser a favor da igualdade e liberdade de gêneros é um papel fundamental de todos nós. Só que eu não vou aplaudir homem que desce do seu privilégio e o entende. Eu não vou jogar confete em cima de homem que fala que compreende a luta da mulher. E principalmente: Eu não vou comemorar por que um homem falou pelas mulheres. A minha luta é por mulheres que falem por si.

Aos homens foi ensinado a união, 
as mulheres tiveram que aprender isso sozinhas. 
Isso não é "machismo ao contrário", 
é sobrevivência! 

(Texto para todos os homens que ficam cheios de male tears e apontam o dedo para feministas, acusando-as injustamente, quando as mesmas resolvem não participar de coletivos mistos. Quando mulheres resolvem lutar ao lado de mulheres, não é por que odiamos todos os homens individualmente, mas por que lutamos contra uma imagem social construída de que "ser homem" é ser o ponto mais alto da sociedade. Se mulheres só se sentem seguras conversando com mulheres é por que essas já sofreram agressões demais partindo de homens! Homens que estão dispostos a entender seu privilégio e ajudar na desconstrução desse privilégio, são super bem vindos na luta. Mas entendam, com o máximo de urgência: Auto organização das mulheres É FUNDAMENTAL! A voz e o ponderamento cabe à elas) 

Ps: Durante todo o texto tratei como se só fosse possível haver dois tipos de gênero - e todos de maneira cis. Sei o quanto isso é errado e prejudicial, entretanto quis retratar a visão de mundo que me foi passada antes de eu conhecer as lutas de gênero e sexualidade. Minha luta feminista só é completa se abranger às mulheres trans igualmente como irmãs e lutar por elas e com elas - dando-lhes voz e deixando que gritem por seus direitos. O homem que tanto critico nesse texto é o homem cis, que não sofre com as opressões diárias do machismo e acha que pode pautar o que é ou não uma agressão de gênero. 

Onde está a mulher? (Da ditadura até os dias atuais)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
Duas faces cobertas da história do Brasil: A ditadura e a mulher
Em tempos onde a Comissão da Verdade é presente, é fundamental entender qual a memória que a Ditadura Militar Brasileira deixou. Em primeiro plano, vale ressaltar o simbolismo que existe em não se referir à essa época tão rasamente como um regime militar. É preciso dar visibilidade até para o sangue que marca essa época. É preciso dar ênfase à ditadura - e entendê-la como tal. Um governo que escondeu durante muito tempo, pois é fácil não querer ver, uma realidade de torturas, assassinatos e repressão através de um avanço econômico e uma copa do mundo. Nesse texto não pretendo falar amplamente sobre os aspectos gerais da ditadura, entretanto. Levando em consideração que esta ainda é uma época sombria da história do Brasil, quero dar visibilidade à outra questão que é igualmente “deixada para depois”. Enquanto tentaram por tantos anos deixar as marcas da ditadura no passado, tentam igualmente deixar as mulheres em segundo plano. Na vivência diária, das relações interpessoais, nas relações afetivas, na militância, no meio acadêmico. Uma segunda voz é dada às mulheres: uma voz baixa, calma, tranquila. Mulher é considerada a mãe, a progenitora, a esposa, a filha. Nunca a guerreira, a militante. 
Há uma necessidade de rever a imagem que a ditadura deixou -e isso vêm sido feito nos últimos anos. O Brasil está abandonando a ideia de silenciar essa época. É preciso dar voz a ela, deixar que ela fale e deixar que cada pessoa mostre sua cicatriz. É preciso abandonar a ideia ilusória de que foi uma época de flores por causa do milagre econômico e da vitória na copa do mundo. Igualmente é preciso repensar a imagem da mulher nessa época. Uma imagem criada por diversas opressões - algumas que vivenciamos até hoje. Essa imagem é bem explicada, talvez sem essa intenção, dado que ainda vivemos sobre os moldes patriarcais e machistas, através dos filmes sobre a ditadura militar. Onde está a mulher? Existe mulher na militância? Qual o papel da mulher na militância? E a tortura? É igual? É preciso analisar com mais cautela e pensar qual o papel das mulheres nos filmes e no cotidiano. 

A imagem frágil da mulher
Socialmente as mulheres já estão carregadas de um senso comum que diz que elas são submissas. Não só na questão de sempre estarem em segundo plano, mas na ideia de que esse segundo plano é formado de fraqueza. Cabe a elas as tarefas que exigem menos do físico e deixam bem distantes de sua realidade qualquer ato que possa ser considerado político. Desta forma, não poderia ser diferente que a maior parte dos filmes sobre a época da ditadura retratem a mulher como o “sexo frágil”. 
No filme “O ano em que meus pais saíram de férias” fica claro desde o início de o pai e a mãe do protagonista são militantes de esquerda. O final dos dois, entretanto, é diferente. Temos a imagem da mãe, em uma das cenas finais do filme, na cama, sendo cuidada por um médico. Ali ficam claros os sinais de que ela foi torturada pela ditadura. Vale questionar o motivo de ressaltarem a imagem da mãe ao final. Pareceu-me uma forma de amenizar os ânimos de um filme que mostra claramente a alienação causada pelo futebol. Uma criança, que primeiro fora abandonada pelos pais que precisaram fugir e depois abandonada pelo destino graças à morte de seu avô, precisava de um apoio materno para seguir a vida. Cabe a mulher, a mãe, sempre carregar consigo sua cria. Cabe a mãe - e às vezes tão somente a ela - criar a criança. 
Não digo que foi intencional a escolha pela sobrevivência da mulher, muito menos critico ferozmente o filme. A maneira como é abordada a paixão nacional pelo futebol é muito vívida. Militantes de esquerda se reunindo para assistir, comemorar e gritar pelo futebol é uma maneira bem clara de entender como essa alienação se fez presente e forte. Em contrapartida, é de suma importância entender que todas essas memórias deixadas, inclusive nas formas que passam despercebidas e foram criadas sem a intenção de fazê-las, são marcas de um meio social e temporal. 
É imprescindível dar ênfase de que para haver uma crítica à forma como a militância feminina é exposta, é necessário que haja menção à militância feminina - algo que em muitos filmes é deixado de lado e esquecido. “O ano em que meus pais saíram de férias” é um ótimo filme para analisar a forma como as mulheres são vistas, pois para além da militância também existe a mulher que é objeto de desejo e a mulher-menina que se encaixa num ciclo social por agir de maneiras esteriotipadamente masculinas.
Analisando mais cruamente a imagem reproduzida das mulheres, pode-se dizer que há um fetiche em colocar a mulher em forma de objeto - seja de decoração para casa ou de desejo. São as duas primeiras faces que são expostas quando se fala da representação feminina: A mulher que é posta como um artigo de decoração como qualquer outro dentro de casa, aquela que serve ao seu marido sem questionar e que abaixa a cabeça para qualquer ordem vinda de um homem e a mulher que é vista como um pedaço de carne pronto para o abate. 
É importante, por causa disso, enfatizar a militância feminina. Aceitar que a mulher também ocupa os papeis mais forte e, principalmente, que a mulher também tem voz e poder político. 

Tortura
Cada vez mais consegue se fazer visível que a tortura realizada em mulheres era diferente da dos homens. A questão sexual não foi esquecida e muito menos deixada de lado. Com os novos relatos graças à Comissão da Verdade é possível ter uma pequena noção do terror psicológico, físico e sexual que essas mulheres sofreram. 
No relato à Comissão da Verdade de Ana Mércia Silva Roberts, ela deixou claro a situação de “carne exposta” que se encontrou - ao ser colocada nua, de braços abertos e coberta por fios que soltavam descargas elétricas sempre que ela abaixava minimamente os braços. Ela também deixou claro que os torturadores a observavam durante horas - e deixou mais claro ainda que todos eram homens. 
E se hoje não vivemos em plena ditadura militar, não estamos assim tão distantes dela. Os índices de estupro só aumentam e não pode-se deixar esquecer de que esta também é uma forma muito vívida de tortura. Uma tortura física e emocional que persegue mulheres cada vez mais. Uma tortura que socialmente é caracterizada por uma relação de poder e uma questão de gênero muito forte. O estupro é a tortura que permaneceu tão ou mais forte depois da ditadura, que nos acompanha diariamente, que nos maltrata e nos mata.

O machismo na militância de esquerda
Esse é o ponto que menos mudou com o passar dos tempos. A militância ainda não é o lugar da mulher. Ainda é necessário buscar e lutar pela voz dentro dos ambientes de luta. Colocam a voz feminina em último plano, falam que devemos nos calar e falar sobre isso depois, insinuam que sabemos menos de política por sermos mulheres. Isso aconteceu na época da ditadura, justificando o motivo de tratarem, muitas vezes, a militante como descartável, e isso acontece repetidamente nos dias atuais. 
São homens barbudos e vestidos de vermelho que gritam mais alto que a mulher companheira. Impõem no poder da voz o poder que querem - e muitas vezes conseguem - ter sobre a voz feminina. Querem silenciá-las. Calá-las. 
Desta forma é possível - e preciso - afirmar que existe uma grande militância política que grita pela quebra das amarras, mas ao mesmo tempo tem uma escrava dentro de casa. E também ao mesmo tempo tira o espaço que a mulher conquistou. É uma busca incessante por uma liberdade muito individualista. É a ausência de olhos para enxergar que existem milhares de outras amarras fora aquelas que nos prendem. É preciso entender que a liberdade - e a igualdade - só existirá quando não somente uma parte for livre, mas quando as amarras das opressões - inclusive àquelas que não nos amarram, mas nos favorecem - forem quebradas. 
As falas ensaiadas por uma militância excludente são, em grande parte, agradáveis de serem ouvidas. Elas falam o que a maioria quer escutar. Ninguém quer escutar que a mulher está lutando pela liberdade de deixar de ser dona de casa quando não deseja ser. Falam que se a mulher não pode lutar por ela - e deixam de lado o assunto, assim ninguém luta por elas. 
A invisibilidade da militância feminina da época da ditadura era enorme e isso refletiu no pouco que elas apareceram nos filmes que retratam esse período. Essa invisibilidade continua forte nos dias atuais e talvez não estejamos tão longe da ditadura quanto imaginamos.