Olhou pro banco e disse: MACHISTA, vai lá!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Fiquei um bom tempo pensando em como começar esse texto. Na verdade, como sempre gostei muito das suas músicas, Emicida, acho que isso vai sair mais como uma carta. Vou tentar te falar coisas que nunca dizem nem pra você, nem pra qualquer homem. Vocês não estão acostumados a ouvir e saber das informações que eu vou contar, então talvez queira se sentar no seu sofá do privilégio masculino.

Trepadeira. Não sou do tipo de mulher que gosta de flor - olha, primeira coisa para te avisar: Nem todas as mulheres são delicadas e ficam apaixonadas ao receber um buquê de flores. Nunca gostei, mas se tem uma planta que me agrada é a trepadeira. Passei minha infância numa casa que tinha um muro coberto por essa planta magnífica. Era um jardim grande e tinha muitos tipos de árvores, flores e matos, mas nenhum deles me causava tanta admiração quando àquela estranha planta que crescia rente ao muro da piscina. Fiquei extremamente triste no dia que tiveram que retirá-la, pois ela causava infiltração no muro da casa vizinha (ou algo assim. Era muito pequena, não lembro direito). 

Então, em primeiro lugar, não acho que mulher nenhuma deva se sentir ofendida a ser comparada com uma planta tão bela. Só que, achar que nenhuma mulher deve se sentir ofendida não anula o que eu acho sobre a sua música. Ela é extremamente machista, mas isso com certeza você já escutou desde o momento que a colocou no youtube. E, bem, esse texto é sobre coisas que homens não sabem (ou não estão acostumados a saber). 

Espero que esteja preparado para o primeiro choque de realidade. É... saber que nem toda mulher é obrigada a gostar de flores não foi o primeiro choque. A primeira revelação que eu quero fazer é que mulher faz sexo. Sim, acreditem. Mulher faz sexo - não somente fazem sexo com mulher. Essa ideia que colocam na cabeça masculina de que mulher é passiva em questão de sexo... bem, é mentira! Mulher faz sexo, mulher gosta de sexo, mulher faz sexo com outra mulher, mulher faz sexo com vários homens, mulher faz sexo antes do casamento, mulher faz sexo para se satisfazer. Mulher goza, mulher goza com homem, mulher coza com mulher, mulher goza sozinha. 

Você goza, Emicida? Faz sexo pra se satisfazer? É... eu também! Eu, minhas irmãs, minha mãe, a sua mãe, a sua tia, a minha prima, as suas fãs. E olha, eu nunca vi ninguém fazer uma música para criticar o homem que gosta de prazer. Mas se a sua visão é tão conservadora nesse quesito, talvez você deva fazer uma "trepadeira parte 2... o outro sexo" e criticar tão fervorosamente também aquele homem que - pasmem! - faz sexo. 

Então, vamos para a segunda coisa que ninguém nunca te contou: Mulher não faz sexo com aqueles que acham que a merecem. Você, acreditando ou não, não é a pessoa ideal para decidir quem é digno ou não de fazer sexo com qualquer mulher. Essa escolha cabe somente a ela. E, por favor, supere esse recalque de "eu fui tão bom e ela não deu pra mim, mas deu pra outros". Nenhuma ação sua torna obrigatório o sexo. Nada do que você faça vai fazer com que seja uma obrigação da mulher dar para você. Agora, se você não sabe lidar com isso - como mostrou que não sabe ao escrever uma música para criticar essa mulher -, bem, é melhor zerar a vida e começar novamente. 

Você ainda deu um toque de "friendzone" na sua música. Que merda de tempero para uma receita que já tá solada antes de ir ao forno. De tantos discursos para fazer coro, você escolheu um que é extremamente infantil. Ou você quer algo mais infantil do que uma pirraça de quando não consegue aquilo que quer? Não está acostumado com isso? Acho que está - ou deveria. 

Emicida, você canta rap. Rap é questionador, revolucionário. Você é negro e com certeza entende o racismo. Só que, infelizmente, enxergar a sua opressão não abriu seus olhos para todos os outros que são oprimidos por razões distintas da sua. Você é oprimido por ser negro - eu sou oprimida por ser mulher. E eu luto por uma liberdade feminina, mas os homens adoram reafirmar que estamos fazendo escândalo por bobeira. Você afirma que fez um poema. Dê o nome que quiser, Emicida, nenhum deles vai anular que o que você fez é machismo. E você, negro, cantor de rap, não está acima do bem e do mal e nada vai me impedir de repetir: Você é machista! 

Só que fica me martelando na cabeça isso de que você deveria ser pelas minorias sociais, pelos oprimidos, pelos injustiçados. É... você tá na luta negra, não está? E mais uma vez, como de costume, eu, mulher, feminista, escuto que a minha luta é menor, sem razão, sem nexo e "para o bem geral da nação" vamos... deixá-la para depois, de lado, ali atrás do armário, bem escondida. Por que ninguém nunca tinha te dito que mulher faz sexo, não é? Só que, pior: ninguém nunca tinha te dito que mulher faz sexo por que quer! 

Como diz Lindy West "A sexualização das mulheres só é aceitável quando não é consensual. Do contrário, é só 'vulgaridade'". Pelo o quê eu to lutando e por quê eu to falando, Emicida? Por que eu não quero que nenhuma mulher mais se veja na obrigação de sexo - e na obrigação de não-sexo. Por que eu não aguento essa sociedade que diz que o sexo, para a mulher, é o maior dos tabus. Eu não aguento essa sociedade que aplaude uma música que reforça o discurso nojento e asqueroso de que mulher boa é mulher pudorosa, mulher santa, mulher que não transa com quem quer - e que não pode querer transar. 

Recuso-me a acreditar que um cantor tão conceituado não saiba da realidade da violência contra a mulher. Da naturalização da violência de gênero. E o que você faz? Reforça esse diálogo. Reforça e faz coro à essa ideia de que existe um tipo de mulher que merece apanhar. Com espada de São Jorge! 

Deixa eu te contar outra coisa que não contam aos homens: Quando ele agride - ou estupra - uma mulher... a culpa é DELE! Não importa se ela negou sexo, se ela estava sozinha, se ela estava com roupa curta. Não importa se você não concorda com o modo de vida dela. Não importa se você acha asquerosa a ideia de que a mulher é tão livre quanto o homem. Não importa se você não sabe lidar com o seu recalque sobre a vida alheia. Não importa nenhum fator desses. 

É, Emicida, a vida é cheia de coisas que nunca contaram aos homens. Se nunca contaram aos homens, também nunca contaram às mulheres. Só que a gente descobre com o tempo essas verdades e tenta mostrar pra vocês: que, se existe liberdade, ela também nos pertence. Sua música fala muito de flores - mas as hierarquiza. Coloca as mulheres - lindas flores - como o patamar mais alto, afinal, homens irão querê-las para além de uma noite. Só que isso é fruto da sua imaginação e de uma criação machista e patriarcal. Nenhuma mulher é melhor do que outra pela quantidade de pessoas que elas levam para a cama. E mais importante: Nenhuma mulher é melhor por que agradou a um homem - e se moldou aos padrões machistas impostos na sua música e na nossa sociedade. 

Eu fico extremamente triste que você tenha escolhido esse discurso para defender, "poetizar" e aumentar. Não é disso que o nosso mundo precisa. O nosso mundo não precisa de mais gente influente falando que a mulher tem que "se dar ao respeito" e se enquadrar em moldes que somente a podam. O nosso mundo não precisa de um cantor de rap dizendo que certas mulheres merecem apanhar. 

Eu não sou uma planta. Eu não sou uma flor, um mato, uma raiz. Eu sou uma pessoa e eu tenho uma vida. E as escolhas dessa vida cabem a mim. O que eu faço da minha vida é escolha minha. Mas, se você quer chamar a mulher que transa de trepadeira, bem... é uma bela planta! 

E eu faço coro a uma frase da sua música: 

ARRASA BISCATE! (O mundo é nosso também!)

(Emicida fez uma postagem no Facebook sobre a repercussão da música. Abaixo direi o que achei da postagem) 

Entendo que talvez você esteja acostumado com um "é ficção" justificando barbaridades. Assistimos novelas e filmes absurdos que propagam preconceitos e reforças discursos extremamente excludentes. Só que, felizmente, não somos obrigados a gostar, apoiar e aplaudir ficções que não nos agradam. E ficção que propagam como "naturais" ações de violência não me agradam - e acho que nem deveriam te agradar. Então, para mim, essa desculpa não é válida. Você é um artista e gostaria de te perguntar se é esse o tipo de discurso que você quer propagar com a sua ficção. É esse tipo de ação que você quer naturalizar?

Você tem outra música que trata da questão no sexo masculino? Pois bem, "Vacilão" não é mais legal que "Trepadeira". Vacilão é o homem que perdeu a mulher que -pasmemos!- não se enquadra na mulher trepadeira. Realmente há uma ligação entre as músicas - mas nem de longe é a ligação que você afirmou. Só que vamos ao ponto que realmente importa: Sua música não é aleatória ao mundo. Ela não está infiltrada em um lugar livre de sexismos, machismos, violência de gênero. Sua música representa exatamente o que é dito pelo senso comum - que mulher tem que se dar ao respeito. Ninguém fala isso de homem, ninguém clama que o homem se respeite, ninguém questiona com quantas mulheres o homem dorme. Quando você cria uma música que reforça o senso comum, você o legitimiza e abre espaço para que as pessoas reforcem seus sexismos e preconceitos. Isso acontece com "Trepadeira", mas nunca iria acontecer com "Vacilão". Emicida, o senso comum diz que o homem é o ápice da nossa sociedade - então, mesmo que ele perca a mulher "certa", ele pode se divertir com as trepadeiras o quanto quiser até encontrar outra mulher "certa". E esse ciclo se repete incansavelmente. Esse ciclo é vicioso e gera uma violência de gênero. Então, não, não é "só ficção". Isso é real e cotidiano na vida das mulheres - mas você precisa descer do seu privilégio para conseguir enxergar. Então... vai descer?!

Você diz que sua opinião sobre a sexualidade feminina não é igual a do senso comum. Diz que não é machista e patriarcal. Então, me explique o motivo de você escolher fazer uma música que vai de encontro com a sua opinião? Há uma razão para isso? É uma poesia mais fácil de fazer - e ser vendida?

Vou responder sua pergunta sobre opiniões diferente: Sim, podemos ter opiniões diferentes. Só que isso não anula o meu direito de criticar sua música. Não tira o meu direito de discordar de você e achar que essa música é simplesmente um desserviço à luta feminista. Então, infelizmente, não estamos do mesmo lado. Não estamos do mesmo lado por que você diz uma coisa - diz ser igualitário, estar ao lado da luta feminista -, mas faz uma música extremamente machista. E não, Emicida, "Rua Augusta" não te deu uma carta branca para escrever quantas merdas quisesse depois.

Você fala da sua história, trajetória e das outras músicas que escreveu. Fala das vezes que disse para escutarem a voz feminina - coisa necessária numa sociedade tão machista. Emicida, não vou jogar confetes em você. Desculpe-me, mas eu, como alguém que sempre admirou o seu trabalho, não vou jogar confetes em você quando você tem ações que deveriam ser normais. Não ser machista não passa da obrigação de qualquer pessoa - principalmente das que assumiram algum papel social.

Não se baseie no pior, Emicida. Não é por que existem raps piores, que você deve se ver no direito de escrever algo machista. Não é por que existem raps que nem tentam enxergar a mulher que você merece palmas.

Eu repito: Não estamos do mesmo lado. Não estaremos do mesmo lado enquanto você não enxergar o desserviço que é essa sua música. Não estaremos do mesmo lado enquanto você continuar achando que tudo se justifica por ser "poesia". Enquanto você não conseguir enxergar os males dessa sua música, não estaremos do mesmo lado - mas espero do fundo do meu coração, que um dia estejamos.

Você PODE escrever uma poesia machista... mas é esse o mundo que você quer deixar para a sua filha? 

Voz masculina não protagoniza o feminismo.

terça-feira, 20 de agosto de 2013
Li quatro textos que estão em alta essa semana e percebi que algo alí me incomodava. Os quatro eram sobre o mesmo assunto, mas dois foram fervorosamente criticados e os outros dois aplaudidos. Pessoas comentavam desmerecendo frases soltas de dois textos, enquanto compartilhavam loucamente e jogavam confete em que escreveu os outros dois. 

O tema desses textos é polêmico - mas simples de ser entendido, o problema é que ninguém quer descer do patamar de seus privilégios para poder entender o contexto: Homens não podem protagonizar o feminismo. Os textos não tratam do assunto na mesma linhagem e nem todos citam esse protagonismo, mas é a mensagem que passa: a opressão de gênero existe e é atual - e já passou da hora de pararmos de duvidar da voz feminina e tentar calá-la. 

Existe somente um diferença gritante entre os quatro textos: Dois foram escritos por mulheres; dois foram escritos por homens. Preciso mesmo dizer qual foi fervorosamente criticado e qual foi aplaudido? 

Ultimamente tenho visto várias pessoas questionando o machismo na luta esquerdista - e isso é ótimo! Assim como vejo milhares de mulheres criticando a transfobia no meio lgbt e feminista - o que também é ótimo! Desnaturalizar essas agressões é preciso para que possamos tornar nossos movimentos cada vez mais plurais, igualitários e libertários. Então, é claro que o assunto é polêmico. Dizer que o homem não pode protagonizar o feminismo é fazer com que os reacionários voltem ao pensamento - se é que saíram dele - de que o machismo é o oposto do feminismo. Só que é um perigo que temos que correr. É preciso deixar claro quem tem que ter voz nesse movimento. É preciso deixar claro quem sofre constantemente nesse sistema patriarcal e machista que vivemos diariamente. 

Sejamos sinceros: Quem cala o homem?! O homem-branco-cis-hetero... quem o cala? Ninguém. Ninguém nunca negou a voz ou a veracidade do discurso desse homem. Não o apago da luta feminista, acho que é dever de todo cidadão lutar ao lado dos grupos de minoria social (e invisibilidade). Agora, a maior questão do feminismo é dar voz a mulher; voz essa que nos foi arrancada desde o berço. Voz que é negada às mulheres cis e, talvez, nunca tenha existido para as mulheres trans. 

Eu acho que existe um grande ponto dentro do feminismo: Lutamos pela voz da mulher, mas talvez o movimento ande esquecendo das mulheres não-cisgêneras. É preciso lembrá-las, abraçá-las, mas principalmente: Entregar um megafone nas mãos delas e deixar que elas exponham a transfobia que sofrem diariamente. É papel do feminismo entender a transfobia como um alvo a ser derrotado tão urgentemente quanto o machismo. 

Então, deixa eu voltar a falar dos quatro textos. Um é da Daniela Andrade e explica o papel do homem na luta feminista - simples, prático, didático e extremamente criticado ao dizer que não devemos tratar as mulheres como vítimas, mas como sobreviventes. Extremamente criticado também ao dizer que a mulher não é machista, pois o machismo é um mecanismo tão forte que faz com que o maior oprimido - as mulheres - tenham um apego e uma dependência para com esse sistema de opressão. A culpa não é delas - e é preciso deixar isso extremamente claro e visível. Outro texto é da Tanira Maurer que fala sobre a naturalização da violência contra a mulher - skatista que fez piada da agressão, a capricho que tenta transformar o estupro em matéria-prima para romance e também foi criticada pela parte que diz "isso só acontece com mulheres". Após as diversas críticas, Tanira ainda respondeu em outra postagem - também de forma bem clara, mas volto a dizer que é preciso descer de nossos privilégios para conseguirmos enxergar com clareza o assunto.

Yashar Ali falou sobre como as mulheres não estão loucas e defendeu que está mais do que na hora de pararmos de desvalorizar e desqualificar discursos levando em consideração o gênero da pessoa que o prega. É um ótimo texto que faz pensar todas as vezes que escutamos que nossos argumentos só eram tão fervorosos e "extremos" graças à nossa tão temida TPM. Henrique Marques-Samyn escreveu sobre os homens pró-feministas, deixando claro que o protagonismo do feminismo cabe somente à mulher. 

O assunto é polêmico por que os homens não estão acostumados a terem sua voz colocada para segundo plano. Nunca mostraram para os homens que a opinião deles, às vezes, não é a válida. Então, é gerada uma revolta toda vez que alguém fala que os homens não são protagonistas de algo - nesse caso, do feminismo. Só que é um assunto até bem simples de ser entendido, então vou usar outro exemplo: Sou uma mulher cis, tenho consciência de que isso me coloca em uma situação de privilégio em relação às mulheres trans. Eu apoio o transfeminismo, mas nunca poderei representá-lo. Eu não tenho meu gênero questionado diariamente, não sou chamada de "ele", não preciso reafirmar para o mundo que sou mulher. O mundo me enxerga como tal, então eu não tenho como entender e protagonizar um movimento contra uma opressão que eu não sofro. É o mesmo caso com o feminismo na luta contra o machismo; embora alguns homens também sejam atingidos pelo machismo, isso ocorre em uma escala extremamente menor do que ocorre com a mulher, além de que todos os homens são favorecidos por esse meio de opressão. Enquanto a exceção do machismo oprime o homem, é regra oprimir e inferiorizar a mulher. 

Nenhum dos quatro textos me incomodou - e nem discordo dos textos. O que me fez parar para pensar e querer escrever esse texto foram as opiniões tão diversas que esses textos geraram. Os textos - tanto das mulheres, quanto dos homens - foram criticados pelo assunto em questão. Tire a palavra final - e central - de um tom de voz masculino e será chamada de sexista. Agora, o que me fez refletir foi a importância que deram aos textos escritos pelos homens. 



Eu não desqualifico os textos por eles terem uma voz masculina e acho bom deixar isso claro. O questionamento que quero trazer aqui é sobre a importância da voz masculina dizendo "escutem as mulheres". Por que é isso que os textos fazem; influenciam que os outros homens escutem as mulheres de uma maneira diferente. Isso é bom, sempre acho válido qualquer forma de expressão que faça com que as pessoas questionem seus preconceitos e privilégios. Só que eu não vou jogar confete em homem algum por que ele se diz feminista (ou pró-feminista). Eu não vou parabenizar incansavelmente alguém que somente afirmou um posicionamento que eu considero como básico nas lutas sociais. 

O que me fez refletir foi, também, a maneira como as mesmas críticas eram expostas. Nos textos das meninas, era uma imposição de que elas estavam sendo extremistas demais - principalmente ao afirmarem que as mulheres sofrem com o machismo incansavelmente mais que os homens. Já nos textos dos meninos, vi várias pessoas questionando. Eram comentários como: "Eu não entendi, mas gostaria de entender esse seu posicionamento". Isso deixou mais claro do que nunca que a voz do homem tem poder, imposição e valor. A voz feminina ainda é vista como uma voz que diz coisas impensadas, mal formuladas, carregadas demais pela emoção e, principalmente, extremistas. 


Então, a crítica que quero fazer aqui não é sobre os homens que escreveram os dois textos, mas sobre os que marcaram presença nos comentários. O feminismo não precisa de um homem para afirmar a voz das mulheres - precisa de mais mulheres que não tenham medo de demostrar sua voz. O feminismo não precisa que os homens ditem as regras da militância - isso cabe às mulheres, que sofrem diretamente com a violência de gênero. Todo o apoio masculino é bem-vindo, assim como eu apoio a luta negra, assim como eu apoio a luta trans. Só que eu não quero confetes sendo jogados em cima de mim por eu fazer algo que não passa da minha obrigação - apoiar grupos minoritários. Não acredito em um feminismo repleto de transfobia, lesbofobia, racismo. Assim como não acho necessário todo esse auê gerado pois dois homens se puseram em um lugar que lutamos para que todos estejam. 

Essa luta é feminina. Eu apoio todos os textos - mas meu coração pede, implora e clama pelo dia que todas essas palavras tenham uma voz feminina. 

Sobre não bater em mulher e ser a mulher que não se pode bater

domingo, 11 de agosto de 2013
Feminicídio. Talvez você nunca tenha escutado esse nome, talvez não saiba sobre o que ele se trata. A mídia, o senso comum, a sociedade machista quer que encaremos esse crime com outro nome. Mais poético, novelesco, fácil de digerir e que não remete a o que realmente é: um crime de gênero. Querem que continuemos a repetir "foi crime passional", por que tem um som mais agradável aos ouvidos.

A Lei Maria da Penha acabou de fazer aniversário e cheguei a escutar que a lei é sexista. A pessoa que disse tal absurdo com certeza ainda não teve consciência de que o crime passional, na verdade, é feminicídio.

Eu sei que irei escutar o mimimi de sempre de que "homens também sofrem violência doméstica" e "conheço vários homens que apanham de suas esposas". Para o bom funcionamento do texto - e da minha cabeça - ignorarei. Não vamos tratar exceção da mesma maneira que tratamos a regra, ok? E o que acontece é que a violência contra a mulher está naturalizada. É rotineira. Mulheres morrer por serem mulheres; o que não acontece com o gênero masculino.

Ninguém morre de amor. Não foi o amor que enfiou uma faca de cozinha no peito da mulher. Não foi a paixão que deu um tiro na mulher e a deixou paraplégica. Não é um sentimento de carinho que torna um relacionamento abusivo. Isso ocorre por que no relacionamento patriarcal e machista existe um sentimento de posse. A mulher deixa de ser independente e ter vontade própria para ser instrumento de desejo e vontades do marido. O homem aceita que tem controle sobre sua esposa, entende que é um direito dele agredi-la, corrigi-la, enquadrá-la na "mulher ideal" para seus conceitos machistas.

A nossa sociedade ensina e educa esse homem - ignorando completamente a mulher, torcendo para que seu marido possa corrigi-la de suas ideias libertárias. Os ensinamentos são básicos e com certeza você já escutou vários deles durante sua vida: Mulher tem que falar mais baixo que o homem, não pode tomar decisões próprias, não precisa trabalhar fora, tem que deixar a casa arrumada, limpa e bem cuidada, tem que educar os filhos nos moldes patriarcais e machistas, tem que estar pronta para sexo sempre que seu marido quiser, não pode negar nada.

A mulher torna-se uma escrava do lar. Objeto de decoração para os amigos de seu marido, objeto sexual quando marido chega bêbado em casa, objeto-saco-de-pancada quando o marido quer liberar a raiva. E tudo é noticiado como um "crime passional". Um crime cometido pela paixão: um sentimento levado ao extremo. Que sentimento é esse? Amor?! Nunca foi. Amor levado ao extremo nunca causaria dor. A culpa não é de um sentimento entre um homem e uma mulher, mas o sentimento que o homem tem sobre a mulher; o sentimento de que pode e deve agredi-la se ela não corresponder as suas expectativas.

Eu cresci escutando que "quem bate em mulher é covarde" e "em mulher não se bate nem com uma flor". Ao mesmo tempo, via mulheres com olhos roxos andando de cabeça baixa na rua, via pessoas questionando o que a mulher tinha feito para o marido bater nela. Com o tempo eu percebi que eles precisavam colocar a culpa em alguém; e esse alguém não poderia ser o homem. Afinal, ser homem é ser o ápice da sociedade, não podemos condená-lo pela violência que ele comete. O que a sociedade faz é simples - e cruel. Ensina para as crianças que mulheres são intocáveis, sensíveis, donzelas, princesas. Ensina que nas mulheres não se deve bater. Só que, ao mesmo tempo, deixa bem claro o que é uma mulher: Cabelos longos, postura reta, palavras doces, voz baixa, pernas cruzadas, olhos voltados para o chão, uma obediência sem questionamentos, uma pureza inalcançável. É preciso ser essa mulher para não ser agredida. Ensinaram-me, desde crianças, esses dois significados: Não se bate em mulher | o que é ser a mulher que não se pode bater. Enquanto crescia, fui vendo muitas mulheres sendo agredidas. Mulheres demais. Até que entendi que o problema era que elas não haviam seguido o padrão de mulher-que-não-se-pode-agredir. E, graças a isso, os homens tinham o direito de bater nelas, estuprá-las... matá-las.

Eu via muito sangue. Sangue demais para quem cresceu achando que, por ser mulher, nunca apanharia. Só que eu apanhei. Apanhei quando era criança, de um garoto alguns anos mais velho que eu, pois ele achou uma afronta uma menina estar jogando Yugi-oh! Apanhei ideologicamente todas as vezes que justificaram algo com um "você é mulher, não entende!". Apanhei internalmente todas as vezes que vi mulheres sendo agredidas, todas as vezes que vi um crime sair impune, todas as vezes que vi a sociedade tentando culpabilizar a mulher pela violência que sofreu. Eu vi o sangue escorrer, mas não era um sangue vermelho, era um sangue transparente. O sangue estava nos olhos com medo, nas posturas curvadas, nos passos atrás do marido. O sangue estava na revista que tenta "justificar" a violência doméstica relativizando o agressor e culpabilizando a vítima*. O sangue estava no caso Samúdio, onde achavam que a morte dela era necessária pois ela era prostituta. O sangue estava no marido de Nigella que reclamou por ela não defendê-lo após ele a agredir publicamente**.

(*)

(**)

Mata-se por ser homem e morre-se por ser mulher; essa é a violência de gênero que enfrentamos todos os dias. Querem mascarar, relativizar e colocar uma poesia no meio, uma novela sobre o assunto, um filme cheio de sangue. Querem que acreditemos que o ciúmes matou, sem explicar que o ciúmes faz parte do sentimento de posse. Só que mulher alguma é objeto para ter dono. Mulher nenhuma deveria ser agredida. Nem a que se enquadra na sociedade, nem a que se recusa a se enquadrar, nem aquela que simplesmente não se enquadra.

Estão gritando que as mulheres estão morrendo de crimes passionais. Você acredita? Eu não. Não existe crime passional, existe feminicídio.

Lola, seu texto me estuprou - e "perdão" não vai curar isso.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013
Nesse momento a única pergunta que eu consigo fazer (sobre o texto polêmico -e desnecessário- da Lola) é a seguinte: Como as mulheres, feministas, leitoras assíduas desse blog (que é o mais lido sobre o tema) estão se sentindo?

Um dos maiores papeis do feminismo, na minha opinião, é chegar para as mulheres que são violentadas diariamente e falar em alto e bom som que a culpa não é delas. E a culpa realmente não é. Um dos trabalhos mais difíceis do feminismo talvez seja conscientizar as vítimas de que o agressor é o pleno culpado pela agressão. É algo obvio em outras áreas da vida, mas não é tão óbvio assim quando se trata de alguma violência contra a mulher.

Quando você é assaltado e vai fazer o Boletim de Ocorrência, nenhum policial vai te questionar o motivo de você estar andando sozinho. Agora, o que acontece diariamente nas Delegacias da Mulher são questionamentos vazios e sem qualquer relevância. Se a mulher foi estuprada, que valor tem a roupa que ela usava? Que valor tem a hora que ela estava andando na rua? Que valor tem se ela estava bêbada? Algum desses fatores alteraria a sentença de "culpado"? Algum desses fatores causaria uma sensação de "ah, estuprador, eu te entendo"? 

E quando uma mulher, sozinha, com medo, recém agredida vai até uma Delegacia (supostamente) da Mulher e é abordada e metralhada com perguntas que deixam a entender que se ela não fosse ela, se ela não agisse como agiu, ela não teria sido violentada, essa mulher aceita que a culpa foi dela. Não foi o estuprador que agiu, foi ela que fez o estuprador agir. 

Essa é uma questão ampla. A violência contra a mulher é silenciada todos os dias, no nosso cotidiano, na nossa rotina. A violência contra a mulher é naturalizada na nossa cultura. E é papel do feminismo desnaturalizar isso e dar apoio para as mulheres. E o primeiro passo é dizer: A culpa não foi sua. 

Explico, então, por que quero saber como as mulheres violentadas que são feministas e leitoras do blog estão se sentindo: As outras mulheres, a grande maioria que sofre a agressão, as que apanham caladas pois acham que realmente a culpa é delas, as que ainda não escutaram que elas podem e devem pedir ajuda ainda não aprenderam o básico: Que o estuprador é estuprador independente dela denunciar. 

Não há um botão de liga-desliga que move as ações dos agressores. E eu não me refiro à eles como monstros, pq isso tira um pouco da responsabilidade masculina nisso tudo. Não digo que a culpa é dos homens individualmente. A culpa é do homem que foi construído na nossa sociedade. E um dos pontos que vale pensar é que, se a culpa do estupro é da mulher (como a sociedade adora afirmar), então todos os homens são estupradores em potencial? Desculpa, mas eu não acredito nisso. Só que acredito que a carga de pensamentos, "mandamentos" e ideias que são passadas para os homens fazem com que eles invisibilizem o estupro (e outras diversas formas de agressão). 

A questão é que diversos grupos/coletivos feministas (se não todos) trabalham cotidianamente com a mulher que não tem a mínima noção de seus direitos. Trabalham com a mulher que acha que é culpada pela agressão que sofreu. Trabalham com a mulher que está simplesmente perdida na situação. E trabalham também com a mulher que não entende que sofreu uma agressão. 

Eu quero saber o que está se passando pela cabeça das mulheres que ajudam as outras. As que tem noção de que não são culpas e passam a vida tentando passar essa mensagem para as outras. Por que essas mulheres, que leem o blog da Lola, encontram (ou encontravam) lá um refúgio. Quer dizer, pelo menos eu fazia o blog "Escreva Lola Escreva" como um Google-feminista. Era incrível como todos os assuntos eram presentes ali.

Só que, então, há uma postagem que diz: "Você, estuprador, também é vítima". 

O papel do feminismo não é se preocupar se o estuprador vai se "curar" ou não. Isso não é doença. O estupro é tão enraizado na nossa sociedade que acontece diariamente. Acontece entre familiares (na maior parte dos casos). O estupro-no-bosque-escuro-e-com-a-vitima-perfeita não existe! O estupro que existe é com as pessoas comuns, a sua vizinha, a minha vizinha, a amiga em comum que temos. O estupro não é somente um homem dominando uma mulher que luta até perder as forças. Muitas vezes, o estuprador já dominou todas as forças da vítima antes de encostar nela. 

E quando um blog que incentiva o feminismo de milhares de militantes e é o ponto de acesso para as que ainda vão entender o feminismo, dá espaço para um estuprador dizer que ele se arrepende, mas não vai se entregar para a polícia pq o maior sofrimento para ele é saber que é estuprador, ela abre espaço para até as mulheres que já aceitaram que a culpa não é delas, se questionarem sobre o fato novamente. 

Feminismo é sim uma questão de direitos humanos. Eu sou contra castração química (principalmente pq não resolveria o problema) e sou contra a pena de morte. Só que isso não quer dizer que eu vou perdoar os agressores das minhas irmãs, amigas e familiares. Isso não quer dizer que eu vou perdoar os agressores das mulheres que não conheço. Não é papel do feminismo perdoar um ato de crueldade; é papel -fundamental- dele proteger as vítimas. 

E, Lola, você acaba de mandar várias mulheres de volta para a guilhotina. 

(esse texto é uma resposta à esse texto: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/08/nao-me-perdoo-pelas-pessoas-que-estuprei.html)