A voz da minha vizinha #1

sexta-feira, 19 de abril de 2013

A voz da minha vizinha é a voz que eu escuto ecoando pelo espaço que vivo, estudo, moro. É aquele comentário racista, homofóbico, misógino que escutei enquanto comprava pão. É aquela "briga familiar" que ocorreu na mesa do almoço de domingo e que, no final, todos fingem que nada aconteceu ali de memorável. Todos seguem a sua vida normalmente, como se as palavras que ali foram jogadas simplesmente não existissem. Você passa pelo posto de gasolina e escuta uma pessoa falando que homossexuais merecem apanhar e a reação do mundo é concordar com a cabeça. Dez minutos depois... sumiu. O comentário, as pessoas. Você almoça com conhecidos e escuta um deles falando que está de acordo com a mulher trabalhar, desde que não deixe de fazer a janta da maneira que ele gosta. Dez minutos depois... sumiu. O que resta em todos esses casos é a indignação sentida no peito de quem tem uma pequena noção desse mundo assustador que vivemos, onde as diferenças não são nem um pouco respeitadas. 

A voz da minha vizinha é a voz que se prendeu no meu raciocínio por mais de meia hora, enquanto esperava o ônibus ou enquanto tentava dormir. São as palavras que eu não consegui digerir - nem responder. Talvez seja o senso comum. Maldito senso comum. Essa voz, a da minha vizinha, diz palavras que são, normalmente, interpretadas como: "não adianta tentar mudar, o mundo é assim, aceite." Pois bem, não aceito, não engulo e não me calo. Se o mundo é assim, vamos mudá-lo. Se a cultura é assim, vamos transformá-la. Por que a voz da minha vizinha não pode ser vista como a voz de uma sociedade inteira enquanto o discurso dito for um discurso de ódio, preconceito e segregação. 


A voz da minha vizinha diz*:  Olha, eu não queria falar nada não, mas que luta vazia essa a de vocês. Sério. Antigamente, mulher não votava, não podia trabalhar fora, não podia usar calça. Agora, nós podemos. Nós somos livres! O que mais vocês querem? Que direitos a mais vocês querem? Já somos iguais aos homens, há outros motivos para se protestar. Olha a corrupção correndo solta por aí, vai lá pra rua fazer protesto contra isso. Agora, isso vocês não querem né? Acham muito melhor ir para as ruas, na frente de todo mundo, deixar os peitos de fora. Vocês não querem direitos iguais, vocês querem o direito de ficarem mostrando suas saliências para o mundo todo ver. É uma luta vazia, pois já lutaram pela igualdade antes. Não tem mais o que lutar (!!!). O que vocês querem é vantagens, privilégios. Não basta uma lei que defende a mulher da violência? Não basta?! O que mais vocês querem, afinal? Andar todos os dias com os peitos de fora e gritando? Agindo iguais a... homens?! Quando vocês não estão agindo iguais a homens, estão agindo iguais a vadias. E o pior: Vocês se orgulham disso. Fizeram uma marcha sobre isso. Vocês banalizam a luta das mulheres de antigamente. 


Antigamente, mulher não votava, não podia trabalhar fora e não podia usar calça. Eu fico imaginando que, naquela época, a grande maioria das pessoas viravam para as mulheres que estavam reivindicando seus direitos e falavam basicamente o que essa minha vizinha falou. Qual o motivo de você querer votar se o seu marido/pai já o faz por você? Você não vai querer ter uma opinião diferente da do homem da casa, não é? Então, qual o motivo de você votar se o seu voto já está representado no voto de um homem? Calça? Usar calça é para os homens, mulheres também tem vestimentas que os homens não usam: as saias. Não há motivo algum para misturar esses dois mundos (tão distintos). E trabalhar fora?! Que absurdo. Vai dizer que o seu marido não é homem o suficiente para sustentar você e seus filhos? Mulher trabalhar fora é uma vergonha para a família.

Argumentos vazios existem em todos os momentos para diminuir um movimento. Se ontem não podíamos usar calça, trabalhar fora e votar, hoje ainda temos direitos podados sim. Talvez não lá na lei, que adora falar que somos todos iguais (mas igualmente adora fazer diferença entre nós). Esses dias li sobre uma mulher trans que foi presa por estar com uma blusa transparente e colocada em uma prisão masculina. Somos todos iguais mesmo? Somos vistos da mesma maneira? Não. Somos adequados à lei da maneira mais favorável. A mulher trans foi presa por um ato que afirma que ela é mulher, mas foi punida como se fosse um homem. A justiça não nos enxerga como iguais e, muito menos, vê nossas diferenças. Se ela, que diz que somos iguais, não nos enxerga como tal, imagina essa sociedade que adora segregar? Você entra em uma escola mais "tradicional" e vê filas onde todos os garotos estão na direita e todas as garotas na esquerda. São os detalhes que mais fazem a diferença nessa naturalização da segregação (e de tantas formas de violência).

É fácil se acomodar com a desigualdade quando não é você que está sentindo a violência e a segregação. Quando não é a sua filha que foi estuprada, quando não é a sua neta que tem medo de sair de casa de noite, quando não é a sua sobrinha que foi chamada de piranha. Quando não foi você que tirou foto pelada e mandou para um namoradinho e esse mesmo namoradinho publicou na internet, é fácil apontar o dedo e falar que é tudo piranha. É fácil demais! Tão fácil que as pessoas estão preferindo fechar os olhos para as enormes atrocidades que estão acontecendo e estão decorando esse discurso de que a luta da mulher é uma luta vazia.

E será que somos realmente livres? Eu não me sinto assim. Vivo em uma sociedade que culpa a vítima. A garota é estuprada e vêm um professor falar na frente da turma inteira que é preciso analisar a roupa que a garota estava vestido, afinal ela poderia estar pedindo por aquilo. Ser chamada de "gostosa" e derivados na rua já é tão natural que as pessoas demoram para enxergar (e aceitar) que isso é uma violência. A mulher não pode ir para um bar beber sozinha que logo todos vão interpretar que ela precisa que alguém sare sua solidão (e de preferência a arraste daquele lugar mesmo que ela diga que não quer). Voltar a pé da balada de madrugada é ganhar um plus na preocupação de ser assaltada; agora você também tem que se preocupar se será estuprada - e morta. Roupa curta é sinônimo de "local público, pode passar a mão". E ouse não sorrir... o agressor achará ruim e pode te agredir mais ainda. Só que, fiquemos todas calmas, somos livres!

Que liberdade é essa que me põe medo todas as vezes que me arrumo para uma festa? Que liberdade é essa que coloca a culpa na vítima? Que diz que ela estava querendo, que a roupa dela demostrava que ela não "se dava ao devido respeito" e, por isso, merecia o ato de crueldade que foi praticado contra ela? Que liberdade é essa, minha senhora? Eu tenho somente a liberdade de ser igual a massa, igual aos padrões que são ditos e reafirmados todos os dias na sociedade. Sou homem ou sou mulher. Sou heterossexual. Sou branca. Sou religiosa. Sou e estou sempre calada! Se eu for contra isso, a liberdade se torna uma arma contra mim. Se eu for uma diferença, uma minoria, eu não tenho o direito de ser o que sou. Então, querida vizinha, que liberdade temos se só é possível ser livre em metade da vida, nunca por completo? Só é possível ser livre se você não sair dos moldes? Isso não é liberdade e, muito menos, igualdade.

Meus peitos. Meus. Minha posse, meu corpo, minhas escolhas, minhas regras. Peitos. Parte do corpo que é comum em homens e mulher e em todas as outras identidades de gênero. O homem sente mais calor que a mulher? Não! Então, por que ele pode sair sem blusas e eu sou criticada se amamento meu filho em público? O peito é o mesmo, o tamanho se tornou uma ofensa agora? Por que, se assim o fosse, a censura não tamparia os meus mamilos com uma tarja preta. Meus peitos não são uma ofensa, então não os sinta como tal. A questão é que eu descobri (embora a sociedade tente esconder a todo modo) que o meu corpo tem somente um dono: Eu! E se eu sou a única dona do meu corpo, eu tenho o direito de fazer dele o que bem entender e andar com as roupas que eu quiser sem que isso me deixe a mercê de estupros, violências e etc. Não há problema algum em uma mulher, no Brasil, mostrar os peitos. Globeleza no intervalo do desenho do seu filho? Pode! Bruna Surfistinha ser quase um filme pornô? Pode! (E nada contra Globeleza ou Bruna Surfistinha). Agora, amamentar em público? Uma aberração! Afinal, por que você precisa ficar colocando essas tetas para fora? Manda o seu filho guardar a fome para quando você estiver em um lugar onde ninguém veja seus peitos murchos. A questão é o peito feminino só é aceito em forma de mercadoria, em forma de submissão. Só é aceito quando é para causar humilhação. Quando a mulher está com os peitos de fora por que QUER, ah, ai ela é piranha, vadia e a ação é "atentado ao pudor".

Maria da Penha Maia Fernandes. Agredida pelo marido. O marido deu um tiro nela que a deixou paraplégica. O crime chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, pela primeira vez, foi julgado como um crime de violência doméstica. Entre todas as milhares de coisas que há para serem ditas sobre a violência doméstica, uma é a que vou frisar aqui: A grande maioria dos casos de violência doméstica são cometidos contra a mulher. O Femicídio é alarmante e não dá para esconder o fato de que a maior parte de suas ocorrências é em caso de violência doméstica. Quantas mulheres são assassinadas, estupradas e feridas todos os dias pelos seus maridos, companheiros, ficantes, pais, avós, parentes? Inúmeras, milhares, mulheres demais! A Lei Maria da Penha não é um privilégio, é o direito de defender as mulheres!

O que é ser vadia? Vejo as pessoas "xingando" de vadia as mulheres que se vestem da maneira que querem, que vivem livremente sua sexualidade, que fazem escolhas por contra própria. São as mulheres independentes, que buscam sua liberdade. Se ser vadia é ser livre, então somos todxs vadias!

Certa vez, na Universidade de Toronto, um policial foi fazer um discurso sobre o grande número de estupros que estavam acontecendo. Em sua fala, ele disse que as mulheres tinham que parar de andar como vadias (sluts) e, assim, os estupros cessariam. A culpa, então, é da mulher? A culpa é da roupa que provocou? A Marcha das Vadias (SlutWalk) é um protesto de repúdio à violência contra a mulher, ao machismo, ao preconceito, à culpabilização da vítima. Para aquele policial (e para milhares de pessoas), vestir-se da maneira que deseja é motivo para ser caracterizada como vadia. E como é dito (e eu já disse, mas adoro repetir): Se ser vadia é ser livre, então somos todxs vadias!

Então, querida vizinha, o feminismo não é uma luta vazia. Há muito ainda pelo o que se lutar. A violência está estampando a capa de todos os jornais. A desigualdade e a segregação está espalhada por todos os cantos. Não está bom como está e não está na hora de ficarmos paradas. Eu, mulher, sou livre para ser o que quiser e quero que essa liberdade seja respeitada. Quero andar na rua sem medo, quero me vestir da maneira que eu quiser e quero fazer minhas escolhas sem ter o dedo apontado para mim todos os dias. Eu, mulher, resisto!



*Eu não escutei isso, necessariamente, de uma vizinha. O que importa é que escutei de alguém.

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